sábado, 2 de outubro de 2021

Existe realmente poluição visual? - 1



    Glória W. de Oliveira Souza[1]


O prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab[2], encaminhou projeto de lei à câmara do município com o objetivo de proibir a publicidade exterior na cidade. Para justificar o ato, o prefeito, em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo[3] menciona que 90% da publicidade exterior paulistana está fora-da-lei e que “com leis confusas, obscuras e contraditórias, o mercado é regulado por uma margem imensa de subjetividade que abre oportunidades de corrupção”. Além disso, ele aponta que o setor é responsável pela “poluição visual da cidade”, sem, entretanto, apontar qualquer indício nesse sentido. Ao contrário do que se imagina, o prefeito não pesquisou o suficiente para tal alegação, pois se o fizesse, certamente não encontraria qualquer estudo, notícia ou referência de dano causado ao ser humano pela publicidade exterior no meio urbano. Martins (2002)[4] e Freitas (2004)[5] ao investigarem mortes e doenças em idosos e jovens decorrentes da poluição atmosférica concluíram que há sim efeitos adversos na saúde da população. Com o mesmo objetivo, Nascimento (2006)[6] fez estudos com grupos de crianças internadas com pneumonias, confirmando que poluentes do ar afetam a saúde infantil, além demonstrar “a elevada susceptibilidade das crianças aos efeitos adversos advindos da exposição aos contaminantes atmosféricos”. A mesma conclusão tinha chegado Bakonyi[7] em 2004. A preocupação com a poluição atmosférica também fez parte dos estudos de Medeiros e Gouveia (2005)[8], ao medir a relação entre poluição do ar e peso de crianças ao nascer. Para os autores, “os resultados reforçam que a exposição materna à poluição do ar no primeiro trimestre de gestação pode contribuir para o menor ganho de peso do feto”.

Portanto, a preocupação com a poluição atmosférica é realmente um caso de saúde pública, inclusive foi estudado por Rumel[9] em 1993 para verificar a associação existente entre os valores de temperaturas máximas diárias e valores médio e máximo diários de monóxido de carbono no Município de São Paulo e a ocorrência de Acidente Vascular Cerebral (AVC) e Infarto do Miocárdio (IM). A conclusão foi que “das internações anuais por IM, 2,1% são devidos à poluição atmosférica e 4,9% a altas temperaturas. Das internações anuais por AVC, 2,8% são devidas a altas temperaturas. Não foi identificada associação entre monóxido de carbono e AVC”. Até mesma a poluição sonora foi pesquisada. Paz, Ferreira e Zannin (2005)[10], fizeram estudo comparativo da percepção do ruído urbano. Concluíram que “a população da zona controlada indicou aumento no nível de ruído percebido. O nível sonoro no centro da cidade tem se mantido praticamente constante e muito acima do especificado pela Lei Municipal. Os indicadores gerados podem servir como parâmetros para caracterizar a percepção à exposição contínua ao ruído pela população”. Portanto, poluição atmosférica e sonora afeta a saúde, mas não há qualquer menção quanto a poluição visual. Assim, cabe a pergunta: há estudos que indicam malefícios nos seres humanos provocados pela exposição à comunicação visual urbana? Nem mesmo acidentes de trânsito – há os que acusam a publicidade exterior de desviar a atenção de motoristas e pedestres – foram noticiados tendo como causador a propaganda ao ar livre. O que se depura do projeto de proibição proposto pelo prefeito de São Paulo é que o mesmo tenha outra finalidade, que não a preservação da saúde e do bem-estar da população.

Nunca se deve esquecer que a disputa pela sobrevivência, incluída aí o poder, levou muitos povos a sobrepujar seus inimigos. Em tempos remotos, isso ocorria através da força física. Ferrés (1998)[11] diz que “nas democracias ocidentais, há escassas limitações físicas às liberdades individuais, mas são substituídas por pressões sutis, mais sofisticadas, menos conscientes. Não costumam ser limitações físicas, mas sim psíquicas”. Essa sutileza na retenção da liberdade individual amedronta os receptores da comunicação, que julgam viver de forma racional e consciente de suas ações e aspirações. Pensar racionalmente não significa ser livre. Souza (2003)[12] aponta que “o medo tomou conta da humanidade. Qualquer fato ou ação é motivo de temeridade, por mais banal que seja. Essa desconfiança, como não podia deixar de ser, atingiu a indústria da propaganda”. Tudo em nome da racionalidade. Mas Dichter (1970)[13] afirma que “a racionalidade é um fetiche (...) nossa cultura não nos permite admitir a verdadeira irracionalidade como uma explicação de nossa conduta. E, no entanto, a maioria dos sistemas religiosos e políticos, assim como aspectos da conduta humana, tais como a lealdade, o amor e o afeto, são todos irracionais”. O indivíduo julga ser livre, mas há limitações que o prendem na irracionalidade, mesmo porque, como alerta Martineau (apud Ferrés, 1998) “a razão é seletiva; em outras palavras, não é racional. Raramente mudaremos as crenças das pessoas com argumentos racionais”. E essa temeridade já chegou à visualidade urbana.

Freud disse, certa vez, que quando razão e emoção se defrontam, normalmente é a razão, e não a emoção, que sucumbe. Portanto, quando se trata de assuntos no qual o coletivo está envolvido, no conturbado mundo atual, mais do que nunca, as pessoas estão agindo muito menos do que pensam movidos por suas convicções, suas ideias e seus princípios, e muito mais do que pensam movidas por seus sentimentos, seus desejos, seus temores (Ferrés, 1998). Esse pavor parece ter se instalado no conceito de que, quando constatado a abundância, instala-se a perniciosidade. Mas isso não se confirma. Luyten (1988)[14] aponta que recebemos diariamente milhares de comunicações, de todas as espécies. Segundo o autor “vivemos cercados por um mundo que, incessantemente, nos lança elementos comunicativos: mensagens. O que acontece, porém, é que a maior parte dessas comunicações é recebida e, imediatamente, esquecidas”. Ortiz (apud Souza, 1999)[15] diz que a informação não é cumulativa, “ela é sempre filtrada pelo crivo da estratégia”. No entanto, o que importa é que o número de mensagens guardadas em nossa memória é muito pequeno diante do grande número de mensagens recebidas. A média diária de mensagens recebidas e lembradas – portanto efetivamente recebidas – é de 100 por dia (Souza, 1999). “A informação precisa ser traduzida para um código específico (os símbolos) que permita sua transmissão (os sinais) através de um meio técnico determinado” (Ortiz, apud Souza, 1999).

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[1] Originalmente divulgado por ortonímia (nome que corresponde ao autor efetivo da obra quando um escritor não assina os seus trabalhos sob pseudônimo ou heterônimo, ou seja, o autor possui existência real) em forma de paper apresentado no 1. Simpósio sobre Comunicação Visual Urbana, realizado no dia 25 de outubro de 2005, em São Paulo, promovido pela FAUUSP. Disponível em http://www.usp.br/fau/depprojeto/labim/simposio/PAPERS/SCV2VI07.htm
[2] Mandato de 1 de fevereiro de 1999 a 1 de janeiro de 2005 (2 mandatos consecutivos).
[3] KASSAB, G. Abaixo a poluição visual. Folha de S. Paulo, 28 de maio de 2006, Caderno Opinião, Coluna Tendências/Debates, pág. A3.
[4] MARTINS, L. C. et al. Poluição atmosférica e atendimentos por pneumonia e gripe em São Paulo, Brasil. Rev. Saúde Pública, fev. 2002, vol.36, no.1, p.88-94.
[5] FREITAS, C., et al. Internações e óbitos e sua relação com a poluição atmosférica em São Paulo, 1993 a 1997. Rev. Saúde Pública, dez. 2004, vol.38, n. º 6, p.751-75.
[6] NASCIMENTO, L. F. C., et al. Efeitos da poluição atmosférica na saúde infantil em São José dos Campos, SP. Rev. Saúde Pública, jan./fev. 2006, vol.40, no.1, p.77-82.
[7] BAKONYI, S. M. C. et al. Poluição atmosférica e doenças respiratórias em crianças na cidade de Curitiba, PR. Rev. Saúde Pública, out. 2004, vol.38, no.5, p.695-700.
[8] MEDEIROS, A.; GOUVEIA, N. Relação entre baixo peso ao nascer e a poluição do ar no Município de São Paulo. Rev. Saúde Pública, dez. 2005, vol.39, no.6, p.965-972.
[9] RUMEL, D., et al. Infarto do miocárdio e acidente vascular cerebral associados à alta temperatura e monóxido de carbono em área metropolitana do sudeste do Brasil. Rev. Saúde Pública, fev. 1993, vol.27, no.1, p.15-22.
[10] PAZ, E. C. da; FERREIRA, A. M. C. e ZANNIN, P. H. T. Estudo comparativo da percepção do ruído urbano. Rev. Saúde Pública, jun. 2005, vol.39, no.3, p.467-472.
[11] FERRÉS, J. Televisão subliminar. Porto Alegre: Artmed, 1998.
[12] SOUZA, W. de O. S. Desconfianças da propaganda dissimulada: temores de mensagens subliminares rondam o merchandising. Caderno UniABC de Comunicação Social, ano V, n.º 33, 2003.
[13] DICHTER, E. Las motivaciones del consumidor. Buenos Aires: Sudamericana, 1970.
[14] LUYTEN, J. Sistemas de comunicação popular. São Paulo: Ática, 1988.
[15] SOUZA, W. de O. Informações periféricas no ABC: Inventário dos veículos periféricos na construção da informação local na região do ABC paulista. (Dissertação de Mestrado). São Paulo: UMESP, 1999.

quarta-feira, 15 de setembro de 2021

Existe realmente poluição visual? - 2

 


Glória W. de Oliveira Souza[1]

 

        Assim, o que prevalece é a imaginação simbólica, cuja função é de mediar entre “a captação consciente da realidade exterior – tal como aparece diretamente ou por meio de signos concretos – e a matéria-prima que emana do inconsciente” (Coelho, 1997)[2]. E isso é feito através de símbolos vivos, que se apresenta, para um observador, como a expressão melhor e mais plena possível de pressentimento e ainda não consciente. Coelho (1997) diz ainda que o símbolo “só é vivo enquanto pleno de significado. Uma vez dele extraído o seu sentido, isto é, encontrada aquela expressão que formula melhor a coisa procurada, esperada ou pressentida, o símbolo está morto, passa a ter apenas significado histórico”. Portanto, o símbolo vivo deve conter em si o que é comum a um extenso grupo humano para poder sobre ele atuar. Como aponta Barthes (apud Mattelart, 2003)[3], cada signo apresenta um duplo sentido. Um perceptível, o significante e outro, contido no precedente, ou seja, trazido por ele, que é o significado.

        Desta forma, o significado tem relação direta com a atuação do mass media e, conforme Wolf (1995)[4], decorre da consonância, cuja associação alia “os traços comuns e as semelhanças existentes nos processos produtivos da informação e tenderem a ser mais significativos que as diferenças, o que conduz a mensagens substancialmente mais semelhantes do que dissemelhantes”. Segundo esse autor, a consonância não atua isoladamente. Ela é parceira da acumulação (que é a capacidade de tematizar uma ideia) e da onipresença. Este não diz respeito somente à difusão quantitativa, mas também ao fato de o saber público – o conjunto de conhecimentos, opiniões e atitudes difundidas pela comunicação de massa – ter um caráter particular. “É de conhecimento público que esse saber é publicamente conhecido” (Wolf, 1995).

        Nesse sentido, o conceito de Maskulka (apud Vargas e Mendes)[5] de que “a partir de determinado ponto, a quantidade de informações e mensagens, passa a criar uma sensação de irritação que acaba por surtir efeito inverso ao que se pretendia inicialmente, ou seja, não permite a adequada absorção das mensagens”, não leva em conta o poder que o indivíduo tem em selecionar a recepção dessas mensagens, já que “as comunicações não intervêm diretamente no comportamento explícito, tendem, isso sim, a influenciar o modo como o destinatário organiza a sua imagem do ambiente” (Roberts, apud Wolf, 1995). E essa organização é realizada a partir do conhecimento que o indivíduo adquire. Ortiz (apud Souza, 1999), diz que é muito comum a confusão entre conhecimento e informação. “Essa é, talvez, uma das crenças mais arraigadas de nossa contemporaneidade. Simples, ela se impõe sem nenhuma necessidade de demonstração”.

        E a crença de que a abundância de imagens no ambiente público e urbano provoca prejuízo ao ser humano pode estar se tornando em uma nova crença, visto que não há dados e pesquisas que provam tal assertiva. Vargas e Mendes dizem que “poluição visual é o limite a partir do qual, o meio não consegue mais digerir os elementos causadores das transformações em curso, e acaba por perder as características naturais que lhe deram origem. No caso, o meio é a visão, os elementos causadores são as imagens, e as características iniciais, seriam a capacidade do meio de transmitir mensagens”. Assim sendo, o ambiente urbano estaria sendo visto como ciência da natureza, e não como ciência social, pois “as ciências sociais devem se preocupar com a compreensão dos casos particulares e não com a formulação de leis generalizantes, como fazem as ciências naturais” (Goldenberg, 1997)[6]. Ao configurar a generalização, tem-se o efeito persuasivo, pois, conforme Russ (1994)[7], a persuasão é a “ação pela qual se leva alguém a crer em algo, por uma adesão completa, tocando sua sensibilidade” o que difere da convicção, que é obtida de maneira racional. E essa ação é feita, primordialmente, pela informação, que, segundo Wolf (1995), é um ingrediente da cultura de massa, que por sua vez, utiliza um “sistema de cultura, constituindo-se como conjunto de símbolos, valores, mitos e imagens que dizem respeito quer à vida prática, que ao imaginário coletivo”.

 Sintema

        Ao ter como base o imaginário coletivo, os defensores da existência de poluição visual o fazem a partir de uma visão particularizada, já que, através do símbolo, como aponta Coelho (1997), se “permite ao sentido engendrar limites e diferenças, tornando possível a mediação simbólica, que abre para o indivíduo a possibilidade de uma pré-compreensão do real – sempre único, singular e não universal – moldando-lhe o comportamento social”, transformando, dessa forma, em sintema[8]. Nesse moldamento socializante projeta-se a sociatria, que é “o equilíbrio sócio-histórico ou antropológico de uma determinada sociedade ou grupo pode ser expresso em termos de uma constante ‘realização simbólica’ manifesta numa cultura cuja dinâmica se dá entre a realidade biopsiquica e a realidade social” (Coelho, 1997).

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[1] Originalmente divulgado por ortonímia (nome que corresponde ao autor efetivo da obra quando um escritor não assina os seus trabalhos sob pseudônimo ou heterônimo, ou seja, o autor possui existência real) em forma de paper apresentado no 1. Simpósio sobre Comunicação Visual Urbana, realizado no dia 25 de outubro de 2005, em São Paulo, promovido pela FAUUSP. Disponível em http://www.usp.br/fau/depprojeto/labim/simposio/PAPERS/SCV2VI07.htm

[2] COELHO, T. Dicionário crítico de política cultural. São Paulo Iluminuras, 1997.

[3] MATTELART, A.; MATTELART, M. História das teorias da comunicação. São Paulo: Loyola, 2003.

[4] WOLF, M. Teorias da comunicação. Lisboa: Editorial Presença, 1995.

[5] VARGAS, H. C.; MENDES, C. F. Poluição visual e paisagem urbana: quem lucra com o caos? Disponível em <http://www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq000/esp116.asp>. Acesso em 03 out 2003.

[6] GOLDENBERG, M. A arte de pesquisar. Rio de Janeiro, Record, 1997.

[7] RUSS, J. Dicionário de filosofia. São Paulo: Scipione, 1994.

[8] Imagem que tem por função promover, antes de tudo, um reconhecimento social; de pertencimento a um grupo ou de identidade. Desse modo, o símbolo se funcionaliza e se vê reduzido à sua potência meramente sociológica. (Coelho, 1997).


Existe realmente poluição visual? – 3

 

Glória W. de Oliveira Souza[1]

 


Ao imputar ao sistema visual urbano o caráter de poluente, o fazem a partir do conceito genérico de poluição. Mas a definição para este termo é a “presença ou introdução, no meio ambiente, de substâncias nocivas à saúde humana, a outros animais e às plantas, ou que prejudicam o equilíbrio ecológico”, já que poluir, que provém do latim polluere, de acordo com Ferreira (1975)[2], significa “sujar, corromper, tornando prejudicial à saúde”. Ao que consta, o acesso do ser humano a símbolos, formas, ícones e cores na urbe não têm provocado qualquer dano biopsíquico. Para qualquer um dos sentidos, e muito menos para a visão, porque esse órgão não funciona de forma isolada dos demais sentidos, ainda mais que “o cérebro é o maior aliado da visão. São os olhos que veem, mas quem enxerga mesmo é o cérebro”[3]. Portanto, a visibilidade – qualidade de visível, que provém do latim visible – diz respeito ao que se pode ver, de forma clara, aparente, perceptível.

 

Para que as mensagens do ambiente urbano possam ser percebidas há que compreender como ocorre a percepção. Embora no uso moderno o termo percepção geralmente se refira a processos sensoriais, como a visão e a audição, Descartes reserva o verbo ‘perceber’ para designar a apreensão puramente mental do intelecto, como na célebre regra: “tudo o que clara e distintamente percebo é verdadeiro” (Cottingham, 1995)[4]. Assim, percepção pode ser diferenciada da sensação, a qual diz respeito à estimulação dos órgãos sensoriais e pode estar restrita aos primeiros estágios de processamento das informações recebidas“ (Stratton; Hayes, 1994)[5]. Para esses autores, a percepção compreende várias áreas, como a percepção visual, percepção da pessoa, percepção auditiva, bem como a percepção “de outras formas de informações, como as relacionadas ao olfato, ao tato, à gustação e à dor”. Isto é, todos os sentidos estão envolvidos. Carneiro e Ribeiro[6] lembram que os homens possuem insuficiência perceptiva. “Não podem apreender do real nada mais que suas impressões. Deste modo, a conduta humana oscila entre matéria e memória, percepção e lembrança”. Domingues[7] adiciona que “o cérebro reptiliano controla os instintos (...), mas como temos que ‘parecer’ racionais, o córtex, senhor da razão, mais que depressa cria um motivo racional”. Assis Brasil (1984)[8] complementa ao indicar que perceber “é conhecer, pelos sentidos, objetos e situações. Para tanto é necessário que o objeto esteja próximo, quer no espaço ou no tempo, ou que se tenha acesso a ele diretamente”.

E a comunicação urbana, principalmente nas grandes metrópoles, contém esse caráter de proximidade, provocando no receptor da urbe uma percepção estética, já que esta “é pura percepção, compondo-se como forma privilegiada de apreensão de uma presença. Não se visa, através dela, a práxis, configurando-se, ao contrário, como forma desinteressada da confrontação com o objeto” (Penna, apud Assis Brasil, 1984), porque a operação de perceber tem a característica da informação limitada e sempre se percebe a partir de uma perspectiva. E essa perspectiva é a visualidade – que tem sua origem no latim visualitate e aponta para o aspecto cambiante, como miragem – onde a publicidade, no conceito de tornar-se pública, conforme Habermas (apud Mattelart, 2003)[9], que “se define como pondo à disposição a opinião pública os elementos de informação que dizem respeito ao interesse geral”. Habermas aponta ainda que sua intrusão na esfera da produção cultural transforma as formas de comunicação cada vez mais inspiradas em um modelo comercial de ‘fabricação da opinião’. E assim tem sido feito no caso da poluição visual.

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[1] Originalmente divulgado por ortonímia (nome que corresponde ao autor efetivo da obra quando um escritor não assina os seus trabalhos sob pseudônimo ou heterônimo, ou seja, o autor possui existência real) em forma de paper apresentado no 1. Simpósio sobre Comunicação Visual Urbana, realizado no dia 25 de outubro de 2005, em São Paulo, promovido pela FAUUSP. Disponível em http://www.usp.br/fau/depprojeto/labim/simposio/PAPERS/SCV2VI07.htm

[2] FERREIRA, A. B. de H. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975.

[3] REDE GLOBO. Percepção do mundo. Fantástico. Disponível em <http://fantastico.globo.com/Jornalismo/Fantastico/0,,AA1028495-4687,00.html>. Acesso em 28 set 2005.

[4] COTTINGHAM, J. Dicionário Descartes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.

[5] STRATTON; P.;HAYES, N. Dicionário de psicologia. São Paulo, Pioneira, 1994.

[6] CARNEIRO, L. de J.; RIBEIRO, S. O. Da seleção das imagens: algumas palavras sobre a percepção em Bergson. Disponível em <http://www.ifcs.ufrj.br/hi/comen3.htm>. Acessado em 23 jun. 2005.

[8] ASSIS BRASIL. Dicionário do conhecimento estético. Rio de Janeiro: Ediouro, 1984.

[9] MATTELART, A.; MATTELART, M. História das teorias da comunicação. São Paulo: Loyola, 2003.

 

segunda-feira, 13 de setembro de 2021

Existe realmente poluição visual? – 4


Glória W. de Oliveira Souza[1]

 

Essa ‘fabricação’ tem como escopo o pressuposto do agenda-setting, que, de acordo com Shaw (apud Wolf, 1995)[2], “é a compreensão que as pessoas têm de grande parte da realidade social lhes é fornecida por empréstimos, pela mass media”.  Wolf (1995) diz que esse fato se dá pela acumulação, que está ligado ao fato de a capacidade que os mass media possuírem para criar e manter relevância de um tema, ser o resultado global – obtido após certo tempo – do modo como funciona a cobertura informativa do sistema de comunicações de massa. Forma-se, assim, a agenda de opinião pública, que diz respeito “à percepção que um sujeito tem do estado da opinião pública: trata-se da importância que o indivíduo pensa que os outros atribuem ao tema; corresponde a um ‘clima de opinião’ e pode inserir-se nas chamadas tematizações” (Wolf, 1995).

Tematização

Desta forma, pode-se inferir que a poluição visual, ou estresse visual, está em voga. Já está tematizado pelo mass media. Para Wolf (1995), “tematizar um problema significa, de fato, colocá-lo na ordem do dia da atenção do público, dar-lhe o relevo adequado, salientar sua centralidade e o seu significado em relação ao fluxo da informação não-tematizada”. Mas o assunto ora tematizado ainda não foi devidamente explorado em seus aspectos teóricos, conceituais e definições. Goldenberg (1997)[3], lembra que teoria “é um conjunto de princípios e definições que servem para dar organização lógica a aspectos selecionados na realidade empírica. (...) Na realidade, tanto leis como hipóteses estão sempre sujeitas à reformulação. A essência de uma teoria consiste na sua potencialidade de explicar uma gama ampla de fenômenos através de um esquema conceitual ao mesmo tempo abrangente e sintético”. De acordo com a autora, “toda construção teórica é um sistema cujos eixos são os conceitos, unidades de significação que definem a forma e o conteúdo de uma teoria. Categorias são os conceitos mais importantes dentro de uma teoria. (...) Hipóteses são afirmações provisórias a respeito de determinado fenômeno em estudo. Uma hipótese é uma suposição duvidosa, algo provável, que poderá ser posteriormente confirmada ou rejeitada”.

Enquanto a hipótese não é colocada à prova, no caso da poluição visual, a socialização das informações dos pesquisadores exige um exercício permanente de crítica e autocrítica, pois, conforme Ortiz[4] (apud Souza, 1999), a informação nasce vinculada à noção de tecnologia e ela só ocorre no contexto das sociedades modernas. Mas o autor alerta que “o conhecimento não estabelece com a tecnologia o mesmo tipo de relação. [O conceito de] informação dialoga com ela, mas não se reduz a sua expressão”. No entanto, como a informação não é cumulativa, ela é sempre filtrada pelo crivo da estratégica, aponta ainda o autor, ao explicar que “uma vez alcançada a meta, ela se torna irrelevante (...) ela perde sentido quando deixa de ter serventia. Nesse caso, obsolescência é sinônimo de inutilidade. Por isso o acúmulo de informação é absolutamente desinteressante”. Desta forma, o fato de possuir mais ou menos informações armazenadas não implica, necessariamente, maior ou menor conhecimento das coisas.

Nesse sentido, os dispositivos de divulgação publicitários surgem como um dos elementos mais visíveis do espaço urbano contemporâneo. Golobovante (2002)[5] diz que a publicidade, ao ser veiculada, “reveste o espaço urbano de uma textura simbólica, utilizando-o com um canal de veiculação da sua mensagem, e, dessa forma, reescreve, ressemantiza e renomeia este espaço, influenciando a sua configuração e, em contrapartida, sendo influenciada por ele. O espaço urbano assume, assim, uma dimensão simbólica”. E essa dimensão é feita por imagem, já que esta “reúne em si as condições para que os três modos de relacionamento entre sujeito e o mundo – o estético, o pragmático e o lógico – se processem harmoniosamente em vez de entrarem em guerra abertas uns com os outros” (Coelho, 1997)[6]. Para esse autor, a imagem tem o caráter psicológico de uma representação da fantasia e não o caráter quase real da alucinação, isto é, nunca toma o lugar da realidade. E ao processar a relação entre real e fantasia, as mensagens publicitárias no ambiente urbano produz identidade cultural, reconhecendo esse conceito como cultura, que aponta para um sistema de representação – elementos de simbolização e procedimentos de encenação desses elementos – das relações entre os indivíduos e os grupos e entre estes e seu território de representação, incluindo sua produção, seu meio, seu espaço e seu tempo.

A identidade cultural, advinda da publicidade no ambiente urbano, modifica a paisagem e o passante. “Um olhar diurno capta uma imagem diferente daquela de um olhar noturno. Detalhes marcantes ficam mais visíveis em determinadas horas. A luz e o néon têm a capacidade de transformar a paisagem, através dos quais podem se fundir cores e texturas” diz Golobovante (2002), ao complementar que a cidade contemporânea é um suporte de signos que devem ser apreendidos instantaneamente, onde “o sequencial cede lugar ao simultâneo, forma e função chegam a ser unidades”. Assim, a sociologia compreensiva, que tem suas raízes no historicismo alemão, distingue ‘natureza’ de ‘cultura’, pois considera necessário estudar os fenômenos sociais e utilizar “um procedimento metodológico diferente daquele utilizado nas ciências físicas e matemáticas” (Goldenberg, 1997). E a escolha de um objeto para estudo já significa um julgamento de valor na medida em que ele é privilegiado. A autora aponta que “as ciências sociais têm sua especificidade, que pressupõe uma metodologia própria”.

Metodologia

Ao se considerar que para uma metodologia seja eficaz, muitas variantes precisam ser levadas em conta no momento da análise do ambiente urbano. A gestalt tem como princípio que “o todo é a unidade mais proveitosa para a análise, já que ele se constitui em sistema independente” (Katz; Doria; Lima, 1971)[7], portanto, não há porque insistir que as imagens urbanas afetam biopsiquicamente os indivíduos, pois a percepção visual – análise e interpretação da informação recebida e processada através do sistema visual – não pode ser confundida com a percepção subliminar, onde as mensagens são recebidas e processadas de forma tal que a pessoa não tem consciência dela (Stratton; Hayes, 1974)[8]. Portanto, “o medo que hoje assola a humanidade é mais fruto do desconhecimento e da falta de informação do que de ações demoníacas da indústria da propaganda” (Souza, 2003)[9]

Ao considerar que as mensagens publicitárias no ambiente urbano contribuem para a poluição e estresse visual, tem-se o que Foucault (apud Mattelart, 2003)[10] chama de controle social. “A ‘disciplina-bloco’, feita de proibições, bloqueios, clausuras, de hierarquias, encerramentos e ruptura de comunicação. E a ‘disciplina-mecanismo’, feita de técnicas de vigilância múltiplas e entrecruzadas”. E esse controle, ao atingir o âmbito político, se transforma em “símbolos do poder [que] são símbolos de soberania” (Lurker, 1997)[11]. No dizer de Coelho (1997), isso se chama paternalismo cultural, que é “as proteções excessivas, oferecidas pelo Estado, à produção cultural de maneira indiferenciada ou a um ou alguns modos culturais escolhidos”.

Nesse sentido, Vargas e Mendes[12] apontam que o meio ambiente urbano, quanto a sua visualidade, deveria seguir esses preceitos e “no caso de anúncios nos próprios edifícios, seria necessário repensar todo o processo de controle. Ou seja, rever os critérios de definição do que seria anúncio”, ao complementar que o poder público deveria “imprimir uma fiscalização eficiente para verificar se os projetos de fachadas foram devidamente aprovados”. As autoras propõem ainda medidas restritivas para a publicidade em fachadas e pedem para “discutir a necessidade de pagamento de taxas e rever os critérios locacionais”. Entretanto a proposta das autoras não se limita a restrições, e sugerem que a municipalidade “é que deveria se apropriar da renda diferencial proveniente das localizações privilegiadas em termos de visibilidade e de fluxo de pessoas, para colocação de anúncios”. Nesse sentido, o ambiente urbano se transformaria em intermediador, configurando o ato em “intermediação cultural [que] tem forte conotação economicista e aplica-se com mais propriedade àqueles casos em que a operação designada tem os traços das operações que se registram no campo das trocas econômicas” (Coelho, 1997).

Ao delegar o poder de escolha da visualidade urbana ao poder público constituído, a visibilidade ambiental tende a transformar o tema da poluição visual naquilo que Althusser chamou, em 1970, de aparelhos ideológicos de Estado. São atos e pensamentos autoritários emanados da inteligência intelectual, mediante uso dos mass media como canal de autoridade. Zucker (apud Wolf, 1995), alude que “quanto menor é a experiência direta que as pessoas têm de uma determinada área temática, mais essa experiência dependerá do mass media para se possuir as informações e os quadros interpretativos referentes a essa área”. Althusser (apud Mattelart, 2003), ao definir o aparelho ideológico de Estado, o diferencia dos instrumentos repressivos que o Estado já possui, como o Exército e a polícia, que exercem a coerção direta. Já os aparelhos ideológicos de Estado cumprem funções ideológicas, como um aparelho significante (escola, igreja, mídia, família, etc.) e “têm por função assegurar, garantir e perpetuar o monopólio da violência simbólica, que se exerce sob o manto de uma legitimidade pretensamente natural”.

Num momento em que as barreiras econômicas, culturais e de fronteiras se alargam devido à globalização, medidas restritivas tem como escopo o localismo, e confronta com os preceitos da transculturalidade, na medida que isso significa a existência de “culturas que se constituem na intersecção de diferentes espacialidades e temporalidades que encontram num dado território um ponto de coexistência sincrônica” (Coelho, 1997). Ao invés de resultarem da justaposição cultural – e essa justaposição inclui também a questão da visualidade urbana – os adeptos da existência de poluição visual apostam no localismo, que “designa, na pós-modernidade, uma tendência de retorno ao particular, ao pequeno e ao diferente em oposição ao universal, ao grande e ao igual ou que há de constante” (Coelho, 1997). A transculturalidade aposta na interação entre diferentes modos culturais, que convergem para a formação de um modo híbrido e não um patrimônio estável e sempre idêntico a si mesmo.

Em face da falta de amparos metodológicos e científicos da existência da poluição visual urbana, que, por conseguinte geraria o estresse visual, cabe neste momento propugnar para que todos os envolvidos na temática da visualidade urbana busquem, de maneira multidisciplinar, tratar o assunto em direção à dessimbolização, que é o processo cultural pelo qual as emoções e os sentimentos são separados do pensamento e focar no objeto estético, que “só se realiza com a contemplação do perceptor, que ainda o explica e o atualiza” (Assis Brasil, 1984)[13]. Esse objeto estético - a visualidade urbana - é formado por imagens fundidas, que, de acordo com Oliveira, pensa-se que se “pode escapar de sua sedução, as imagens coladas – agora realidade e imaginação – permanecem fundidas. Toda vez que evocadas, uma ou outra, as duas existirão”. Assim, ao invés de se advogar a perissemia[14] para ‘poluição visual’, urge a busca da polissemia, que é a multiplicidade de significações para uma só palavra. E essa palavra comporia a frase: existe realmente poluição visual?



[1] Originalmente divulgado por ortonímia (nome que corresponde ao autor efetivo da obra quando um escritor não assina os seus trabalhos sob pseudônimo ou heterônimo, ou seja, o autor possui existência real) em forma de paper apresentado no 1. Simpósio sobre Comunicação Visual Urbana, realizado no dia 25 de outubro de 2005, em São Paulo, promovido pela FAUUSP. Disponível em http://www.usp.br/fau/depprojeto/labim/simposio/PAPERS/SCV2VI07.htm

[2] WOLF, M. Teorias da comunicação. Lisboa: Editorial Presença, 1995.

[3] GOLDENBERG, M. A arte de pesquisar. Rio de Janeiro, Record, 1997.

[4] SOUZA, W. de O. Informações periféricas no ABC: Inventário dos veículos periféricos na construção da informação local na região do ABC paulista. (Dissertação de Mestrado). São Paulo: UMESP, 1999.

[5] GOLOBOVANTE, M. da C. Publicidade e espaço urbano, os desdobramentos do consumo. Trabalho apresentado no NP03 (Núcleo de Pesquisa Publicidade, Propaganda e Marketing), XXV Congresso Anual em Ciências da Comunicação, Salvador/BA, 04 e 05 de setembro de 2002.

[6] COELHO, T. Dicionário crítico de política cultural. São Paulo Iluminuras, 1997.

[7] KATZ, C.; DORIA, F.; LIMA, L..Dicionário crítico de comunicação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1971.

[8] STRATTON; P.;HAYES, N. Dicionário de psicologia. São Paulo, Pioneira, 1994.

[9] SOUZA, W. de O. S. Desconfianças da propaganda dissimulada: temores de mensagens subliminares rondam o merchandising. Caderno UniABC de Comunicação Social, ano V, n.º 33, 2003.

[10] MATTELART, A.; MATTELART, M. História das teorias da comunicação. São Paulo: Loyola, 2003.

[11] LURKER, M. Dicionário de simbologia. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

[12] VARGAS, H. C.; MENDES, C. F. Poluição visual e paisagem urbana: quem lucra com o caos? Disponível em <http://www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq000/esp116.asp>. Acesso em 03 out 2003.

[13] ASSIS BRASIL. Dicionário do conhecimento estético. Rio de Janeiro: Ediouro, 1984.

[14] JOTA, Z. dos S. Dicionário de linguística. Rio de Janeiro: Presença, 1976.



quarta-feira, 6 de janeiro de 2021